29/07/2006

Excerto delicioso

Maria Celeste vestida de negro olha aleatoriamente para o ar, de perna cruzada e o pé a baloiçar de um lado para o outro, insistentemente. Umas dezenas de pessoas caminham de parede a parede no chão claro. Outras dezenas sentam-se com os olhos a fixar objectos incertos. Os corpos em posição desconcertante. Todos num lugar comum: o Centro de Saúde de Rio Tinto. Todos com o mesmo objectivo: arranjar uma eventual vaga para uma consulta médica. Maria Celeste, de 62 anos diz que a “espera é normal”, mas não disfarça os nervos que sente: “Estou a ferver, tenho de fazer a comida para o meu pai de 88 anos, ao meio-dia. E já são 11h”. A paciente chegou ao Centro de Saúde de Rio Tinto às 8h e não soube dizer quando vai ser atendida. Mais à frente, entre pés nervosos, Silvana Coelho estende a chupeta ao seu bebé. “Perdemos tempo para arranjar uma vaga. Chegámos cedo, às vezes estamos aqui o dia todo para arranjar um lugar, ou alguém que nos atenda, e com crianças ainda pior”, conta Silvana Coelho, com um olho na criança e o outro para cima. Pára uns segundos a pensar, e continua: “Aqui deveria haver mais médicos para despachar o serviço”. Maria Celeste já sabe de cor quem é atrás de quem: “Eu sou atrás daquele sr. com camisa às riscas, ele é atrás daquela sra. de cabelo preto…”.Seja como for, Maria Celeste não reclama só a consulta por vagas, reclama também as consultas normais por marcação: “Uma consulta normal demora três meses”. E explica a sua indisponibilidade financeira para poder usufruir de médicos privados. A mensagem sonora fez eco com o nome de Maria Celeste, e um suspiro dos utentes fez-se sentir. Rui Mesquita, de 28 anos, acomoda o corpo à cadeira e é sintético: “Isto é um transtorno de vida”. “Temos trabalhos, satisfações a dar, não sabemos quando vamos sair daqui e parece que nunca mais somos atendidos”, desabafa, enquanto olha para a porta, que dá acesso aos consultórios médicos.

Joana Soares, in O Primeiro de Janeiro

2 comentários:

Joana M. Soares disse...

:)

Caucau disse...

O Serviço Nacional de Saúde ainda é uma "pedra no sapato" dos portugueses que admitindo que a saúde é um bem essencial, reclamam a sua acessibilidade a todos, independentemente sa sua situação económica! Ainda mais doloso é quando o problema de fundo não é a falta de médicos, mas sim a má organização e os vícios de um sistema altamente corporativista.
Fica o desabafo! Uff! E continua a fazer serviço público no teu Blog!
Beijinho